SBP Sociedade Brasileira de Psicologia

Podcast une literatura e psicologia para discutir relações familiares

Em um dos episódios do podcast “Fabulações sobre famílias brasileiras”, ex-guerrilheiro e filha de Rubens Paiva contam sobre efeitos da perseguição política em suas famílias

Universidade de São Paulo 
Jornal da USP
Publicado: 25/05/2022
Por Valentina Moreira e Candido

“Regimes ditatoriais vão no fundo na alma humana.” Com essas palavras, o ex-deputado federal pelo estado de São Paulo e ex-guerrilheiro José Genoíno introduz a experiência de ter sido perseguido e torturado pela ditadura civil-militar brasileira. Em conjunto com Vera Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva e professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP, Genoíno participa do episódio Sono do Pai. Nele, os convidados falam como o regime militar produziu feridas que afetam até hoje as famílias de suas vítimas. O episódio faz parte do podcast Fabulações sobre Famílias Brasileiras, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e está disponível gratuitamente aqui

Sono do Pai começa com o conto homônimo de Eduardo Bione, que narra a visão de um filho sobre seu pai, um perseguido político durante o período militar. Seguindo a proposta do podcast, o texto de Bione introduz alguns temas que repercutem nas relações familiares – nesse caso, o sofrimento psíquico daqueles que tiveram contato com o aparelho militar. A partir da leitura, Genoíno e Vera recordam suas vivências e refletem sobre a maneira que cada um deles encontrou para enfrentar certos traumas psicológicos. 

Na fala de Vera Paiva, o assassinato de Rubens Paiva ganha uma perspectiva subjetiva. Além da importância histórica do caso, ela conta como a impossibilidade de saber o paradeiro do seu pai afetou sua família. Vera lembra, por exemplo, do episódio de 2014, quando o coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, revelou à Comissão da Verdade que o corpo do ex-deputado teria sido jogado no mar. “Depois do depoimento do Malhães, a experiência minha e da minha irmã, de entrar no mar e sentir uma coisa completamente diferente”. 

Vera Silvia Facciolla Paiva, professora do Instituto de Psicologia e filha do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado em 1971 pelo regime militar

Ela conta que, depois do relato, o coronel alterou a versão da história algumas vezes, provocando novamente a angústia de não poder saber ao certo o que aconteceu. Sobre isso, Vera pontua: “O próprio Paulo Malhães fala que o desaparecimento foi uma tática para destruir as famílias, uma tática para criar feridas não reparáveis. […] O desaparecimento é a tentativa de infligir o sofrimento permanente.”

Já Genoíno trata, entre outros assuntos, sobre os efeitos da tortura, da prisão e sua relação com outros companheiros de luta e suas famílias. No seu relato, ele lembra: “Eu fiquei muito tempo na clandestinidade e preso. Fiquei 12 anos sem ver minha mãe nem meus irmãos. Quando fui vê-los pela primeira vez, ela [mãe] chegava para mim, pegava no meu braço e perguntava ‘você tá vivo?’, ‘você é você?”. 

Fabulações da Família Brasileira 

Belinda Mandelbaum, professora do IP, mediadora do episódio e coordenadora do Fabulações da Família Brasileira, explica que o programa traz vivências individuais para discutir questões que são comuns às diversas famílias. Questões que, ainda que não se reproduzam de forma semelhante, expressam aquilo que está em questão na sociedade brasileira.  

Segundo ela, “a família é uma caixa de ressonâncias da vida social, profundamente atravessada pelas questões mais amplas em que a sociedade está inserida. Por isso, as relações familiares reproduzem, em seu interior, relações autoritárias, violentas ou até de solidariedade. É como se, de alguma forma, a família fosse uma espécie de microcosmo dessa realidade macro que estamos vivendo.”

Belinda Mandelbaum, professora do Instituto de Psicologia 

Os temas foram retirados dos textos literários produzidos pelos alunos do curso Figurações da Família na Literatura Brasileira do Século 20, oferecido pelo IEA em 2020. O curso faz parte de uma frente de pesquisa da professora do IP, que investiga as mudanças nos modelos familiares e suas expressões na literatura. No final da formação, os participantes produziram narrativas inspiradas no que foi ministrado. Para o podcast, foram selecionados 12 textos, usados como ponto de partida para os episódios que estão sendo produzidos ao longo do ano. 

Além de Sono do Pai, lançado em abril, Fabulações da Família Brasileira conta o episódio de março, Foi em um poço, que coloca em foco questões sobre racismo e branquitude e tem como ponto de partida o conto de Lorraine Carvalho Silva. No próximo lançamento, o podcast irá discutir questões de gênero, machismo e choque geracional, a partir do texto Guarda. 

Belinda explica que os objetivos são divulgar os textos escritos pelos alunos e servir como gancho para que o ouvinte entre em contato com outros materiais sobre as questões debatidas. Por isso, no site do programa, também são disponibilizados materiais para quem desejar se aprofundar nos assuntos abordados. 

Ela acredita que o programa é capaz de instigar a reflexão: “Nosso desejo é que os episódios promovam a identificação, que o ouvinte possa pensar sobre algumas questões como ‘o que é família?’, ‘o que nós consideramos famílias?’, ‘há um único modelo, ou existem outros modelos?’. Falamos dos diversos sofrimentos, afetos que envolvem as relações familiares, para poder também oferecer um canal para que sofrimentos possam ser pensados e elaborados.” 

Sono do Pai e todos os episódios já lançados pelo Fabulações da Família Brasileira estão disponíveis gratuitamente no site, no Spotify nos players na página do Jornal da USP. Nessas plataformas, também é possível acompanhar os lançamentos do programa. 

Fonte: Jornal da USP

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